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A dor é importante: como e por que nós, animais, sentimos dor?

Fonte: Emmanuel Lafont
Sentir dor é algo muito comum em nossas vidas, desde nossa infância vamos descobrindo e sendo ensinados sobre situações e perigos que podem ocasionar dor. Muitas pessoas desenvolvem uma aversão muito grande a tirar sangue ou tomar uma vacina por medo de agulhas, muitas vezes, associado a situações traumáticas relacionadas à dor… Mas porque sentimos dor, visto que é uma sensação tão desconfortável e limitante em diversas situações?  Se a dor é algo que causa uma sensação tão ruim para quem a sente e mesmo quando observamos alguém a sentindo, porque ela é algo tão presente (conservado em vários grupos) nos seres vivos?

Para responder tudo isso, podemos iniciar investigando como a sensação de dor ocorre nos animais. A dor é percebida pelos organismos por duas diferentes vias: a via física e a via consciente da dor. Na via física as células nervosas superficiais presentes na pele percebem algum estímulo prejudicial e levam essa informação até a medula espinhal, na qual neurônios motores (aqueles que se conectam aos músculos) são ativados para que nos afastemos da possível ameaça imediatamente. Essa via se chama nocicepção, a via física do reconhecimento da dor. Um exemplo dessa via física é quando encostamos em uma panela muito quente e instintivamente afastamos nosso corpo dela, muitas vezes antes mesmo de realmente sentir que estava quente. Mesmo animais com sistema nervoso muito simples experienciam esse tipo de percepção e resposta. Este vídeo exemplifica essa via de experienciar a dor.

A via de percepção consciente da dor acontece quando esse estímulo de dor passa pela medula espinhal e chega até o cérebro, no qual muitos neurônios, em diferentes regiões, criam a sensação da dor. Em humanos, essa experiência consciente é muito complexa, associada com vários sentimentos, como medo, estresse e pânico. Essas situações criam uma experiência subjetiva da dor. Um exemplo dessa via de percepção da dor é o caso de desenvolvermos medo tremendo de alguma situação, como, por exemplo, de tomar uma vacina, pois associamos a sensação de medo e dor com uma situação específica, o ato de se vacinar. Também podemos ser condicionados a sentir medo e pavor de situações que não causam as mesmas reações em outras pessoas, pois a subjetividade de cada indivíduo na construção de sentimentos de aversão quando expostos a diversas situações estressantes é muito complexa. Essa parte do processo é mais difícil de identificar em outros animais, pois não conseguimos nos comunicar verbalmente com eles. Nossas deduções sobre o que eles sentem partem muito de nossa observação de seus comportamentos, correlacionando com os nossos.  

Tudo bem, essas são as vias pelas quais sentimos dor, mas não seria muito mais simples não sentirmos toda essa dor e não termos que desenvolver experiências traumáticas? Bom, sentimos dor quando estamos expostos a situações nas quais podemos nos machucar e causar dano ao nosso corpo. Neste sentido, a dor é responsável por nos “avisar” o que é perigoso e danoso para nosso organismo, ela faz com que evitemos aquela situação perigosa novamente, pois aprendemos que aquilo pode nos causar essa sensação desconfortável de dor. Por isso ela é mantida nos mais diversos grupos de animais ao longo da evolução! Sentir dor em uma queimadura é um aviso para que não façamos isso novamente, visto que uma queimadura é potencialmente muito danosa para nossa pele. Em outros animais, sentir dor também possui essa importância de manutenção da sobrevivência, porém não compreendemos com tanta profundidade como se dá a experiência da dor neles, afinal são organismos diferentes do nosso.

Observando animais mais próximos evolutivamente de nós, como outros mamíferos, podemos notar manifestações que nos dão indícios de dor com clareza. Por exemplo, podemos identificar a dor em um cachorro emitindo sons lamuriosos, arqueando as costas, modificando seu comportamento que indicam que ele está sentindo dor, por ele manifestar essa sensação de maneira parecida com a nossa. Mas e como identificamos que um animal mais distante evolutivamente de nós, como uma ostra, por exemplo, está sentindo dor?

Temos mais dificuldade de entender os comportamentos de invertebrados pelo fato de estes serem mais diferentes de humanos, o que dificulta nosso reconhecimento sobre quando ou como sentem dor. Apesar disso, estudos feitos com cefalópodes (polvos, lulas e náutilos), demonstram que animais invertebrados também possuem sistema nervoso complexo e sentem dor. Lulas possuem nociceptores (proteínas que percebem um estímulo de dor) que exibem sensibilização a longo prazo e também apresentam aprendizagem associativa rápida e memória de longo prazo estável. Isso foi entendido através da observação de que lulas aprenderam a inibir seu comportamento predatório, através de determinados estímulos e elas mantiveram a memória desse estímulo que as fez diminuir a predação por menos 12 dias, demonstrando aprendizagem associativa e de longo prazo estável. A administração de doses baixas de opioides (compostos que atuam no sistema nervoso para atenuar e aliviar a dor, podendo ser naturais ou sintéticos) como endorfina, produz efeitos 'analgésicos', ou seja, diminuem as vias de transmissão nervosa, reduzindo a percepção de dor, em caracóis terrestres da espécie Cepaea nemoralis. O famoso opioide morfina, muito utilizado por humanos, tem um efeito semelhante no caracol. Essas substâncias aumentam o tempo necessário para que os caracóis respondam a estímulos negativos, que seriam imediatamente percebidos como de dor e teriam uma resposta imediata pelos neurônios motores.

Cepaea nemoralis, caracol que demonstrou efeitos analgésicos na presença de compostos opioides. | Fonte: http://www.bihrmann.com


Como conseguimos reconhecer melhor essas vias de sensibilidade da dor em vertebrados, sentimos mais empatia por eles e a legislação de muitos países os ampara para que tenham proteção contra situações que os causem dor desnecessária. A legislação brasileira referente ao uso ético de animais em ensino e pesquisa, chamada Lei Arouca, inclui animais vertebrados, atribuindo a estes a consideração ética no seu uso por humanos. Porém, animais como polvos, abelhas e caranguejos, que são invertebrados, não possuem regulamentação por lei para seu uso ou estão sujeitos a qualquer comitê de ética. Será que esses animais não sentem dor ou não possuem consciência o suficiente para serem incluídos na legislação e possuírem alguma proteção?

A Declaração de Cambridge sobre Consciência, assinada no Reino Unido em 2012 por vários especialistas em neurociência, afirma que as bases do sistema nervoso que conferem condições como sentir emoções não estão restritos apenas à região cortical do cérebro, que é a mais desenvolvida em animais humanos. Nossos cérebros e os de outros animais funcionam como verdadeiras redes de neurônios, formando circuitos cerebrais envolvidos em processos fisiológicos como tomada de decisões, sono e atenção. Estas características de funções do sistema nervoso parecem ter surgido muito cedo na evolução, na radiação de muitos invertebrados, como insetos. Parafraseando a declaração: “Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos dos estados de consciência juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, e muitas outras criaturas, incluindo os polvos, também possuem esses substratos neurológicos.”

O famoso escritor e biólogo evolucionista Richard Dawkins afirma em um vídeo que, analisando as funções biológicas da dor e reconhecendo esta como uma característica tão instintiva e primitiva em seres vivos, não há motivos para acreditarmos que animais não humanos não a sentem. Inclusive, ele sugere que animais não humanos podem sentir níveis de dor ainda mais intensos que humanos. Uma vez que o papel biológico da dor é alertar sobre situações perigosas que causam dano e podem até levar à morte, animais que não possuem a racionalidade e inteligência que humanos possuem para identificar, aprender e evitar essas situações perigosas mais prontamente, possivelmente necessitam (e por isso foram selecionados evolutivamente nesse quesito) sentir uma dor mais intensa para aprender esse processo. 

Muitos estudos sobre esse assunto ainda estão sendo desenvolvidos e muitas são as perguntas que reivindicam respostas, a fim de entender os incríveis mecanismos biológicos por trás de organismos tão fascinantes que compõem a vida na Terra e também para evitar causar dor de maneira desnecessária em qualquer um deles. Em breve, outro texto do Sporum trará mais discussão sobre essa temática, envolvendo dor e consciência. A reflexão sobre o impacto de nossas decisões e ações faz parte de princípios éticos pelos quais somos guiados ao longo de nossa vida. Nos informar sobre os sujeitos envolvidos nas consequências de nossas práticas é o ideal para estarmos cientes do peso de nossas escolhas. Convidamos todos à reflexão.



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