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Camundongos e você: o que é que tem a ver? Considerações sobre experimentação em animais.


Autoria desconhecida

Por: Tâmela Zamboni Madaloz e Victor Soares Santibañez.


Você sabia que muitos objetos que você usa no seu cotidiano tiveram de passar por testes em animais antes de chegar até você? Remédios, produtos de higiene, pesticidas e até mesmo, quem diria, casos de montadoras de automóveis testando seus produtos, como o diesel, em animais já foram registrados. Devido a tabus na dissecção (ato de dissecar, de separar as partes de um corpo ou de um órgão) de corpos humanos, animais eram utilizados para estudos anatômicos na Grécia Antiga. Uma expressão conhecida do inglês é Canary in a coal mine, em português “Canário em uma mina de carvão”, utilizada para se referir a algo que sinaliza uma desgraça que está por vir e tem origem no processo de mineração, no qual os mineradores podem estar expostos a gases tóxicos. Eles levavam canários (aves) presos em gaiolas para as minas. Se gases tóxicos, como o monóxido de carbono (CO), fossem liberados durante seu trabalho, matariam as aves antes de matar os mineradores, o que lhes sinalizava que deveriam deixar o local. O CO tem uma afinidade química pelos transportadores de oxigênio do sangue muito maior que o próprio oxigênio, impedindo que este chegue às células, o que ocasiona uma morte por asfixia. O canário possui menor tamanho corporal que um humano e, devido a isso, uma maior taxa metabólica. Isso faz com que suas células fiquem sem oxigênio antes que as células de um humano e por isso ele morre antes. A Figura 1 é uma ilustração que retrata um experimento com um animal e algumas reações a ele no século XVIII.

Figura 1: Pintura de Joseph Wright de Derby (1768). Neste trabalho, o artista captura várias reações, como choque, tristeza, apreciação, curiosidade e indiferença diante do uso de um animal vivo, uma ave, como objeto de experimentação no século XVIII na Inglaterra. | Fonte: Wikimedia Commons.
A utilização de animais como cobaias para testes é empregada em muitas áreas da ciência, como para fazer novos medicamentos, novos métodos cirúrgicos, vacinas, no ensino, testando os possíveis danos que substâncias podem causar, para entender melhor mecanismos biológicos, etc.

Animais são utilizados como modelo induzido quando, por exemplo, fazemos com que eles desenvolvam alguma doença. Um exemplo de modelo induzido é a utilização de aloxano, substância que induz um estado diabético nos animais e permite o estudo das implicações desse estado no organismo, além de ajudar a entender o efeitos de diferentes tratamentos.

Também existem os modelos negativos, nos quais não ocorre reação a algum determinado estímulo. Através desse método, no qual foram utilizados imunossupressores (substâncias que diminuem a resposta imune), foi possível fazer um transplante de uma perna inteira entre ratos geneticamente distintos.

Mas que contribuições a utilização de animais trouxe aos diferentes campos científicos? A descoberta da insulina e produção de soros e vacinas contra diversas doenças tiveram contribuições de testes em animais. Por exemplo, cachorros, coelhos e galinhas foram utilizados em estudos para tratamento da raiva;  vacas no tratamento da varíola; macacos na vacina da febre amarela; ratos e camundongos no desenvolvimento de fármacos antidepressivos...

Cachorros, coelhos, vacas, macacos, ratos… diversos animais são utilizados na ciência, mas o animal que frequentemente aparece em imagens ao lado de cientistas é o camundongo. E de fato a maioria das pesquisas são feitas com eles. Mas por quê? Os camundongos que utilizamos em experimentos hoje em dia são descendentes dos domésticos, com quem compartilhamos uma longa história evolutiva. Por muito tempo vivemos no mesmo ambiente, comendo os mesmos alimentos e nos expondo às mesmas doenças. Foi apenas no século XIX que  camundongos começaram a ser utilizados em laboratórios. Algumas características que favoreceram a utilização desses roedores são o fato de estes se reproduzirem muito e em pouco tempo, além de serem são facilmente domesticados, pequenos e de fácil manuseio.  

Uma das áreas da ciência que se utiliza muito de camundongos é a genética, o que se deve justamente ao fato de esses animais terem um tempo médio de vida curto e similaridades genéticas com humanos e a ser relativamente fácil “editar” seu DNA. Alguns casos em que eles vêm sendo empregados com edições no DNA são doenças, disfunções ou malformações, buscando reproduzir os mesmos sintomas apresentados na nossa espécie.

Dentre esses podemos citar o camundongo nude, que possui sistema imune menos eficaz e por isso é utilizado em pesquisas com tumores e com doenças autoimunes. Outros exemplos são camundongos obesos, diabéticos e com distrofia muscular. A Figura 2A mostra um camundongo obeso, e a Figura 2B mostra um camundongo nude.

Figura 2. Exemplos de camundongos utilizados em pesquisas. (A) Camundongo obeso; (B) Camundongo nude. | Fonte: Andrade, 2006






Mas espera aí! Os camundongos são uma espécie bem distinta da nossa, isso não altera nada? Com certeza altera. Apesar de se reconhecer que animais auxiliaram nas descobertas de inúmeros avanços científicos, este modelo é também muito criticado. Questões como o tempo de vida dos camundongos são problemas quando se tenta extrapolar dados deles para humanos. Em testes para avaliar toxicidade, por exemplo, o tamanho corporal pequeno desses animais é um problema, pois embora seja possível extrair quantidades necessárias de sangue sem causar morte, a fisiologia do animal é afetada, atrapalhando a sequência da pesquisa. Os tecidos dos camundongos também são pequenos, o que dificulta a comparação com a espécie humana.

Alguns exemplos de casos em que as extrapolações feitas em experimentos com animais para seres humanos não deram certo são o da penicilina (antibiótico), que é letal para porcos da índia, porém bem tolerada por seres humanos. A aspirina se mostrou teratogênica, ou seja, quando presente durante a gestação causa má-formação, em cães, ratos, camundongos, gatos e macacos, porém não em mulheres. Já a talidomida, caso clássico de uma droga que mulheres grávidas tomavam para aliviar enjoos, ocasionou muitos casos de malformação, como encurtamento dos membros, defeitos visuais, auditivos, da coluna vertebral e até do tubo digestivo e problemas cardíacos, pois inibe o desenvolvimento normal durante a gestação de humanos, embora não cause defeitos na formação de ratos e muitas outras espécies.¹

Acreditou-se que, por serem muito próximos filogeneticamente dos humanos, macacos seriam os melhores modelos para testes, porém estudos feitos com AIDS em macacos acabaram não dando certo, já que vacinas contra HIV/AIDS que funcionaram nos outros primatas não funcionaram em humanos. Já o rato, animal amplamente utilizado em experimentos, possui inúmeras diferenças fisiológicas comparados com humanos: eles não possuem vesícula biliar, respiram obrigatoriamente pelo nariz, têm hábitos noturnos, localização diferente da microbiota intestinal, entre muitas outras diferenças.

Portanto, temos que aceitar que animais não são pequenas pessoas; as inúmeras diferenças fisiológicas nos impedem de extrapolar muitos dados para humanos. Não é à toa que muitos estudos que passam por testes em animais acabam não obtendo sucesso na parte seguinte da pesquisa, que envolve o teste em humanos.

Existem também problemas éticos que envolvem a utilização desses animais, na qual não se considera o animal como um indivíduo com vontades, preferências, mas apenas um objeto de laboratório. Pesquisas com animais foram e são importantes para a ciência, porém o debate e as problematizações são necessários para construir sempre uma ciência de fato autoavaliativa. Não há dúvidas de que devemos muito aos camundongos que usamos para nos proporcionar a vida que temos hoje, e por isso temos a responsabilidade de encontrar formas alternativas de fazer ciência para poupar sempre que possível os nossos pequenos amigos.

Monumento aos camundongos de laboratório em Novosibirsk, Rússia. | Fonte: Alex Cheban.
Referências: 

¹ Salén JCW. Animal models: principles and problems. In: Rollin BE, Kesel ML. The experimental animal in biomedical research: care, husbandry and well-being: an overview by species. 3ed. Boston: CRC Press; 1995.


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