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A história de como a biologia justificou o racismo

Comparação de crânios entre primatas; argumentando no sentido de aumento da inteligência  | Jornal El País
O conceito de raça e a comunidade científica tiveram uma importância histórica significativa no período entre os séculos XV e XX, principalmente como mecanismos de justificação da escravidão e do racismo estrutural. As opressões diversas direcionadas aos povos não brancos eram fundamentadas pela hierarquização racial construída por teorias científicas. Tais teorias inferiorizavam povos indígenas, africanos e outros grupos étnicos não europeus, no sentido de fundamentar todo um paradigma imperialista, dominador e colonizador.

João Felipe Marques em um artigo destaca que após a saída da Idade Média o conceito de raça passou a tentar responder à pergunta: quem são os outros, estes recém-descobertos tão diferentes dos ocidentais? Quem são esses seres que parecem fisicamente conosco mas vivem de uma maneira diferente? Será que são da nossa espécie? Será que são inteligentes? É aqui onde a biologia entra, o conceito de raça “pura” foi transportado da Botânica e da Zoologia para justificar as relações de dominação e de sujeição entre classes sociais.  
  
É importante ter em mente que nesse período da história da ciência, o que determinava o modo de estudar era o paradigma cartesiano, sendo assim, o que importava era dividir o objeto de estudo em partes e analisá-las. Portanto, a busca pelas barreiras era constante. Nesse sentido, Lineu, o criador da nomenclatura binomial e da taxonomia moderna, ao analisar a questão humana, por volta de 1735, incluiu os seres humanos em apenas uma espécie: Homo sapiens, porém, dividiu-os segundo critérios geográficos em seis raças, sendo elas Europeus, Americanos, Asiáticos, Africanos, Selvagens e Monstros. Porém, Lineu não se limitou a dividir a espécie humana em raças de acordo com sua distribuição geográfica e, na décima edição de seu livro Systema Naturae, acrescentou características comportamentais, morais e culturais em cada raça. Como resultado, enquanto que a raça africana era tida como preguiçosa, negligente e indolente, a raça europeia era distinguida pela sua vocação pela descoberta e pelo culto à lei. Marcas dessas correspondências entre o físico e a moral enraízam a estrutura do nosso convívio social até dias atuais.

Lineu colabora mais uma vez com o racismo científico quando utiliza e divulga a Scala Naturae ou escala natural. Estrutura na qual todos os organismos seriam postos em ordem crescente, linear e progressiva de complexidade. Não é difícil imaginar quem estaria no topo da escala. Acima do branco europeu apenas anjos, demônios e Deus. Sendo assim, ameríndios e negros melanésios, entre outros povos, eram considerados pela ciência da época como inferiores na escala natural da vida.

Outro cientista natural que contribuiu para o raciocínio racista da época foi George-Louis Leclerc, conde de Buffon. Buffon e Lineu foram os dois naturalistas com maior renome do século XVIII. O primeiro é conhecido por sua enciclopédia chamada História Natural Geral e Particular, composta por 36 livros onde basicamente todas as pessoas interessadas em ciências naturais consultavam. Buffon foi o criador de um mecanismo chamado degeneração, que fugia um pouco das ideias fixistas da época, que imaginavam espécies fixas sem mudanças ao longo do tempo. Buffon acreditava que os organismos poderiam degenerar ao longo do tempo, ou seja, modificar sua estrutura a partir de um tronco comum ou um ideal de espécie. Porém, como de costume para os pensadores da época, o ruim estava sempre do lado mais fraco. As espécies animais latino-americanas, por exemplo, eram basicamente seres degenerados a partir de espécies nobres europeias. Os povos não brancos eram degenerados a partir dos europeus. As classes mais pobres eram degeneradas da burguesia. Raciocínio esse que varreu a Europa do século XIX.

Semelhante às linhas de pensamento citadas anteriormente, a Frenologia também se enquadra dentro do racismo científico. Tal ciência seria pautada na ideia de que o tamanho e o formato do crânio seriam indicadores de inteligência ou características morais. Essa lógica foi primeiramente proposta por Franz-Joseph Gall, que afirmava que crânios maiores com cérebros maiores determinavam pessoas mais inteligentes, o que naturalmente seria o caso dos europeus. Nessa época, onde não existiam comitês de ética que avaliassem as pesquisas feitas, experimentos terríveis foram realizados em indivíduos não europeus, tanto para fins da Frenologia quanto para outras ciências, utilizando como metodologia choques elétricos e amputações, por exemplo.

Após a publicação do livro de Charles Darwin, A Origem das Espécies, em 1859, as visões de mundo das ciências naturais começaram a se modificar. O fixismo das espécies passou a dar lugar a modificação ao longo do tempo. O grande triunfo de Darwin foi ter reunido uma boa quantidade de evidências biológicas para fundamentar suas alegações, além de propor um mecanismo evolutivo chamado de seleção natural. Esse mecanismo impactou fortemente a maneira da sociedade ocidental de analisar os fenômenos naturais. A ideia do equilíbrio da natureza caiu e deu lugar à imagem da luta pela sobrevivência.

Darwin propôs em seu livro que todos os seres vivos teriam um ancestral comum, sendo assim, poderíamos representar a vida através de uma árvore. As populações com seus organismos evoluíram, portanto, a partir desse tronco comum de maneira lenta e gradual, guiadas pela seleção natural. A seleção natural seria o mecanismo evolutivo a atuar, que funcionaria selecionando os indivíduos mais aptos e, portanto mais bem adaptados ao ambiente.

Esse raciocínio de Darwin foi transposto às Ciências Sociais no chamado Darwinismo Social. Este propunha uma análise da sociedade a partir de uma perspectiva de luta pela sobrevivência, onde os fortes sobrevivem e os fracos são erradicados. Segundo Bolsanello, inúmeros pensadores utilizaram-se do Darwinismo Social para explicar e justificar a sociedade estratificada produzida, na época, pelo capitalismo industrial.

O filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) foi um dos grandes pensadores dentro do chamado Darwinismo Social. Inclusive, ele foi o criador da famosa frase “sobrevivência dos mais aptos”, que depois passou a ser usada pelo próprio Darwin em seu livro. Spencer pensava em uma aplicação direta da seleção natural de Darwin em sistemas sociais. O Darwinismo Social considera que os seres humanos são desiguais por natureza, ou seja, dotados de diversas aptidões inatas, algumas superiores, outras inferiores. A vida na sociedade humana é uma luta “natural” pela vida, portanto é normal que os mais aptos a vençam, ou seja, tenham sucesso, fiquem ricos, tenham acesso ao poder social, econômico e político. Da mesma forma, é normal que os menos aptos fracassem, não fiquem ricos, não acessem a qualquer forma de poder.

O Darwinismo Social era muito mais do que um estilo de pensamento científico da época, na realidade, se estruturava como uma ideologia. Buscava por meio do campo teórico justificar e aprovar a dominação capitalista em processos como o período colonial. Nesse sentido, um dos grandes aliados do Darwinismo Social era o Eugenismo, fundado 1883 por um dos primos de Darwin. Peláez, no prólogo do livro Herencia y eugenesia¹, apresenta a Eugenia como sendo uma ciência que buscava o melhoramento da espécie humana. Para isso era necessário detectar os seres mais bem dotados física e mentalmente e favorecer seus matrimônios. Por outro lado, era necessário identificar todos aqueles que pudessem contribuir para a deterioração da raça: doentes, delinquentes, débeis mentais para evitar seu matrimônio e reprodução.

Francis Galton (1822-1911), o primo de Darwin criador da eugenia, dedicou sua vida a tal projeto. Estudava a chamada curva de distribuição do talento, onde poucas pessoas seriam geniais ou imbecis e a maioria das pessoas estaria no meio. A nomenclatura utilizada era a seguinte: gênios, muito habilidosos, capazes, muito inteligentes, pouco inteligentes, retardados, retardado-estúpidos, muito estúpidos e por fim, imbecís. Galton buscava maneiras de classificar com facilidade as pessoas em tal escala para assim, poder implementar a reprodução diferencial. Utilizava para isso, métodos estatísticos e conhecimentos da antropologia biológica.

Galton era conhecido pelo esforço de divulgação de suas ideias e da criação de grupos e sociedades eugênicas. Em nome da eugenia foram mortas aproximadamente 36 mil pessoas nos Estados Unidos entre 1900 e 1940, pessoas estas consideradas inválidas para reproduzirem pois iriam degenerar a espécie humana. As ideias eugênicas e do Darwinismo Social foram importantes influenciadores também do pensamento de Hitler e do genocídio por ele causado.

Após a Segunda Guerra Mundial, duras críticas foram feitas ao conceito de raça pela UNESCO em duas declarações construídas com o auxílios de vários pensadores de diversas áreas. De maneira gradual, mas não sem grandes discussões acadêmicas, o conceito de raça foi se modificando e se transformando até chegar em significados próximos a população e etnia. Partindo de uma perspectiva cuja ênfase residia em categorias fixas e estáticas, “raça” foi sendo redefinida de modo a efetivar uma conciliação com um evolucionismo cuja ênfase era em dinamismo e mudança.

Raça passou a ser entendida como uma construção social, ou seja, há pouca coisa relacionada com biologia ou genética. Raça é simplesmente algo que emergiu do esforço humano por criar barreiras. Há mais variação genética dentro de uma ‘raça’ do que entre ‘raças’. Em outras palavras, diferenças genéticas entre raças são quase insignificantes quando comparamos com as diferenças entre pessoas aleatórias dentro de uma mesma raça. Portanto, argumentos com base genética para sustentar esse conceito já não apresentam poder explicativo. O determinismo genético vem sendo duramente criticado pela comunidade científica e maior força vem sendo creditada a cultura dentro do âmbito evolutivo.

Nos dias atuais, racismos científicos já não são tão explícitos como nas teorias vistas neste texto, porém, ainda aparecem de maneiras sutis nas atitudes acadêmicas como, por exemplo, na única e exclusiva utilização de autores europeus, bem como nas representações dos corpos, nos materiais produzidos, majoritariamente brancos. Não podemos esquecer que a hierarquização racial foi feita e sobrevive ao tempo e aos progressos da ciência e se mantêm ainda intactos no imaginário coletivo das novas gerações.

Referências Bibliográficas
¹ Peález, R. Introdução. In: Galton, F. Herencia y eugenesia. Tradução, introdução e notas R. A. Peález. Madrid: Alianza Editorial, 1988. p. 9-29.

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