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Mente, cérebro e livre-arbítrio: Uma investigação filosófica

Por: Eduardo E. Quirino


Autoria desconhecida


Se você, como eu, gosta de ciência e a entende como nossa melhor forma de conhecer o mundo, esse texto irá te deixar angustiada(o). Se, diferentemente, você acredita que há mais coisas entre o céu e a terra que nossa vã filosofia é capaz de saber, ou seja, se você aceita a religião ou espiritualidade como fonte de verdade, esse texto também lhe deixará angustiada(o). 

Começarei explicando as angústias para o primeiro grupo. Se você ama ciência e acredita que ela resolve muitos problemas e os que não resolve agora ela poderá resolver no futuro, então você é muito provavelmente o que a filosofia chamaria de “cientificista”. O cientificismo geralmente é acompanhado por duas teses, a primeira é a tese do Fechamento Causal do Mundo e a segunda a tese do Monismo Ontológico do Físico (ou fisicalismo). Calma, apesar do nome essas duas teses são fáceis de explicar.  A primeira diz que todas as relações causais só ocorrem entre objetos físicos, ou seja, nada não físico causa (faz acontecer etc.) eventos físicos. A segunda tese é a de que tudo que existe é físico. 

Ok, vamos a um exemplo, para clarear o que está em jogo. Suponhamos que na sua frente haja um celular ou um computador nesse momento. Esse computador foi construído por um empresa que reuniu peças construídas em outras empresas,para essas peças chegarem lá precisaram ser extraída de minas de silício e minérios de metais. Voltando mais no tempo chegamos a montanhas ou rochas no chão, mais ainda, a supernovas, voltemos, voltemos… chegamos no início do universo. Ou seja, para seu computador ou celular estar onde ele está, muitos objetos tiveram que agir um sobre o outro. Esse regresso chegaria até o início do Universo. Nesse contexto, alguém que acredita nas duas teses acima afirmaria que: em nenhum momento, do Big Bang até o like no Tinder de dez minutos atrás, alguma coisa que não fosse física foi necessária para explicar como o celular passou a existir, além disso, a pessoa também afirmaria que não há objetos que não sejam físicos e essa é uma boa razão para eles não interferirem na nossa cadeia causal.  Coisas que não existem não atrapalham (mas pessoas que acreditam nelas, talvez). 

Com o avançar do argumento, as coisas ficarão mais nítidas. Enfim, adicionemos mais algumas coisas que você talvez também acredite. A física clássica, newton-cartesiana (devida, em grande medida, aos esforços de René Descartes e Isaac Newton) assume que um corpo é qualquer objeto. Para essa física, todo o corpo tem um movimento determinado por certas variáveis. Algo com certa massa, certa velocidade e lidando com certa quantidade de atrito se moverá uma quantidade exata de metros, que pode ser calculada com precisão infinitesimal (dependendo da complexidade do sistema analisado). 

Claro, você deve ter ouvido falar que há “outras físicas” a Relatividade Geral e a Mecânica Quântica. A Relatividade Geral é determinista no sentido acima. Dando-se valor preciso para as variáveis se encontra um único resultado que descreva o deslocamento de um corpo qualquer. Qualquer erro no resultado observado, está vinculado a erros cometidos por nós na hora de obter os dados que seriam postos nas equações ou por imprecisões matemáticas. E a Mecânica Quântica? Primeiro, não há A Mecânica Quântica, mas várias delas, vários corpos matemáticos com interpretações diferentes e que prevêem adequadamente todos os resultados empíricos obtidos, nenhuma sendo claramente melhor que a outra. Ainda assim, a maioria das interpretações aceitam que o mundo quântico é probabilístico. (Mais tecnicamente, o colapso da função de onda é obtido em termos de probabilidades), ou seja, os resultados das equações da Mecânica Quântica se dão em probabilidades, não havendo certeza antes de medirmos o sistema de qual será seu comportamento. Não importa para nós uma análise detalhada disso, apenas que no nível mais básico da nossa física, nas coisas absurdamente pequenas, a ideia de que tudo está determinado devido às condições iniciais (por exemplo, massa, velocidade, atrito, etc.) não se mantém. 

Feito esse tour, vamos voltar ao nosso assunto. Você acredita em Newton com ressalvas (para corpos com massas ou velocidades extremas ela não funciona muito bem), ótimo. Retomando rapidamente, a Mecânica Quântica, ainda que supostamente possa descrever qualquer sistema físico, nunca teve seus efeitos distintivos (emaranhamento, colapso, dualidade onda-partícula etc.)  observados em objetos grandes como moléculas de vários milhares de átomos. Moléculas tais como as que compõem o nossos neurônios. (Um vídeo legal sobre Mecânica Quântica é esse).

Agora vem a angústia. Se sistemas grandes como os que compõem nossos neurônios muito provavelmente se comportam em termos newtonianos e, portanto, deterministas e tudo que se comporta por determinação se movimenta perfazendo a única trajetória que poderia fazer; se nosso pensamento é um conjunto de neurônios sendo ativados em ordens e dinâmicas complexas e tudo o que existe é físico, então não temos livre-arbítrio.  (para um vídeo interessante explicando isso aqui)

Vamos analisar de novo, todos os nossos neurônios agem do único jeito que podem agir. Nossas escolhas são apenas neurônios sendo ativados. Se nossas escolhas são neurônios sendo ativados e eles são ativados do único jeito que podem, então eles não poderiam ser ativados de forma diferente. Assumindo que nossas escolhas são ativações de neurônios, que eles não podem ser ativados de forma diferente concluímos que não podíamos ter escolhido diferente, assim sendo, não temos livre-arbítrio. Que conclusão desagradável! Eu não posso escolher ter feito o que eu fiz e nem escolher não fazer. Eu não posso ser culpado e nem glorificado por minhas ações e aparentemente eu me iludo o tempo todo achando que eu posso escolher as coisas.

Nesse momento o segundo grupo de pessoas ri dos cientificistas, “nós temos almas, elas nos permitem agir livremente”, então… provavelmente também não. 

A visão de que há uma coisa que escolhe e pensa, uma coisa que é nossa experiência em primeira pessoa,ou seja, que há uma alma e que ela é distinta do corpo é presente em muitas religiões. No entanto, só foi aderida pela filosofia, testada criticamente e encaixada nos moldes dessa discussão por René Descartes. Sua ideia era justamente explicar a diferença de seres humanos e máquinas similares a seres humanos. 

Descartes supõs, então, que havia duas coisas que fariam o todo de um ser humano, uma parte pensante res cogitans e uma parte que tem massa, ocupa lugar no espaço, etc., a res extensa. Para o filósofo, as duas coisas eram substâncias completamente distintas, uma pensava a outra era operada pelas leis da natureza. Uma era determinada, a outra livre etc. Essa ideia se chama Dualismo¹

A primeira objeção que essa visão recebeu, e que ela nunca deu conta de resolver, diz que se dois objetos são de tipos completamente distintos como pode um afetar o outro? Ademais, mesmo que haja um modo de haver essa interação, há na física moderna a lei da conservação da energia, a chamada primeira lei da termodinâmica. Se entendermos o mundo como um sistema fechado, essas almas para agir sobre nós precisariam aumentar a energia no universo. Pode até não ser impossível, almas são coisas não conhecidas por nós, elas podem ter truques mágicos. O grande ponto é que é completamente improvável que apenas os seres humanos recebam as bênçãos da quebra da primeira lei da Termodinâmica. Quão antropocêntrico se deve ser pra sustentar essa crença? 

Sem essa violação, não haveria como a alma ativar objetos físicos com potencial de ação bem conhecidos como os neurônios. E não havendo essa causa, as almas se tornam ineficientes para sustentar o livre-arbítrio, ainda que sua existência não seja necessariamente falsa.   

Há outra opção, obviamente. A de que eu cometi um erro ao entender as moléculas do neurônios como newtonianas, elas podem muito bem ser quânticas (descritas quanticamente). O mundo inteiro é probabilístico e assim, escapamos das amarras do determinismo.

Infelizmente, isso não é tudo. Agora é a bela hora de definirmos o que se entende por livre-arbítrio, pois precisaremos fazer uma pequena, mas fundamental, distinção para mostrar que a Mecânica Quântica não é nossa cavalaria. 

Immanuel Kant, importantíssimo filósofo do Séc. XVIII, define livre-arbítrio, de maneira bastante simplificada, como a capacidade de iniciar uma cadeia causal. Ou seja, POR ESCOLHA mover um objeto (ou a si mesmo) e iniciar novos movimentos e consequências desses no mundo². Veja que aqui há duas coisas que o livre-arbítrio requer, iniciar algo sem causa anterior e escolher fazer isso. Concedendo que as leis probabilísticas da Mecânica Quântica tornem o colapso de uma entidade fundamental (sobre Colapso, ver vídeo acima), por exemplo, uma causa não causada, o que atenderia ao primeiro critério para a existência de livre arbítrio, uma vez que tratamos de probabilidade tratamos de POSSIBILIDADES em oposição ao determinismo (no qual elas não existem). E, aceitando que isso subindo cada vez mais na escala de grandeza dos corpos altere como o mundo é (uma grande concessão, aliás), não se está minimamente garantido que você tem escolhas. Ao que parece seriam completamente imprevisíveis quais mudanças um colapso qualquer causaria, principalmente por serem espontâneos e não determinados. Assim, a Mecânica Quântica, ao que parece não pode nos salvar de sermos seres sem escolha, uma vez que falha em atender o segundo critério para o livre-arbítrio. .

Então… somos só robôs de carbono vivendo na terra e fazendo tudo tal como fazemos devido ao Big Bang? Temos escolhas, mesmo que sem livre arbítrio? Podemos ter livre arbítrio? Apenas através do estudo da filosofia você poderá decidir se esses argumentos acima expostos são válidos ou não. Na verdade, eu posso adiantar que da forma exposta, o argumento não segue, no entanto, o que importa é saber PORQUE não. Acontece que o objetivo desse texto era apenas apresentar um problema para despertar interesse. Tudo o que foi dito foi amplamente debatido e há saídas bastante engenhosas propostas. No entanto, há ainda muito a ser feito. O debate a respeito da existência do livre arbítrio e suas implicações para a Ética, para o direito e para a sua vida continuam sendo do interesse de vários pesquisadores, entre cientistas, filósofos e, também, artistas. 

As pesquisas continuam, por escolha ou por determinação.  

Referências

1-Flanagan, Orwel; The Science of Mind;2ª edição. MIT Press 1991 Pág. 18-22
2-Pinzani, Alessandro; Sobre a terceira Antinomia, 2012. Acessado em: academia.edu 2018

Leituras Sugeridas:

para uma introdução geral à filosofia da mente:
Heil, J. Philosophy of mind: a contemporary introduction, 2° ed. Routledge press. 1998

Para uma análise da filosofia da mente nos contextos científicos
Flanagan, Orwel; The Science of Mind; MIT Press 1991

Sobre a visão Kantiana de liberdade:
Pinzani, Alessandro; Sobre a terceira Antinomia, 2012. Acessado em Academia.edu 2018

Para uma interessante abordagem puramente filosófica para os problemas acima e outros relacionados. 
Vihvelin, Kadri, "Arguments for Incompatibilism", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.),  
Van Inwagen, Peter, Philosophical Studies 27 (1975) 185-199.

Para um trabalho técnico em filosofia e neurociência que mostra como se pode ter escolha sem livre-arbítrio:
Mograbi, J.C Gabriel, Emergência, Mente e Decisão: A Relevância Causal de Muitos Níveis, Tese doutoral 2008 
                                                                                            
Exceto a primeira e a segunda sugestão nenhum dos livros são fáceis sem bagagem filosófica, infelizmente há pouca ou nenhuma literatura introdutória ou técnica em português.                                                            
                                                                                                     

Comentários

  1. Realmente é um texto que nos desperta interesse ao um modo diferente de pensarmos a esse respeito !! Valeu pelas dicas! De fato fomos acostumados a simplesmente aceitarmos as definições, são poucos que as estudam com tanto afinco !!

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  2. A via mais fácil pra conciliar o determinismo com o livre arbítrio me parece ser o contextualismo epistêmico. Provavelmente essa questão filosofica só evoluirá ao lado das ciencias cognitivas.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Bem legal o texto, segue aqui também uma leitura que pode contribuir com conceitos e exemplos http://www.comciencia.br/livre-arbitrio-ao-nosso-alcance/
    :)

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