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Seleção natural, especiação e ontogenia

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Representação do desenvolvimento embrionário de um mamífero | Autor Desconheico

A evolução, através das lentes da síntese moderna ou neodarwinismo, é classicamente tratada como mudanças na composição genética das populações através da seleção natural, e esta seria o mecanismo mais importante em todo o processo. Mas a pergunta que coloco aqui é: será mesmo que a evolução, sendo tão complexa, pode ser explicada de maneira tão simples? A seleção natural tem realmente todo esse poder? Tentarei desenvolver essas questões ao longo do texto. Farei isso com base em um capitulo escrito por Edgar Wiese Zacchi no livro¹ chamado Discussão de Novos Paradigmas: vida, embriologia e evolução.


A chamada síntese moderna ou neodarwinismo, foi a junção do darwinismo com a genética mendeliana. A seleção natural somada ao gene. Explicações evolutivas nesse sentido encheram as revistas científicas após o início do século XX. Esse estilo de pensamento tem provocado grandes descobertas, porém, em muitos casos, se coloca como uma barreira para a utilização de novas análises, como por exemplo as com enfoque no processo desenvolvimental. Ao longo da história da ciência, rompimentos com o paradigma vigente têm sido propostos. As teorias do neutralismo e equilíbrio pontuado são bons modelos para iniciarmos nossa caminhada.



Tradicionalmente dentro do neodarwinismo, os seres são entendidos como compartimentalizados em diversos elementos morfológicos, onde cada elemento seria uma adaptação por seleção natural ao meio. Portanto, a seleção positiva seria regra, ou seja, variantes mais bem adaptadas são selecionadas e portanto sobrevivem mais e geram descendentes. Muitos autores, como Richard Dawkins, reduzem a ação da seleção natural ao genoma, assumindo ser ela a causa da evolução adaptativa no mundo biológico. O neutralismo do geneticista Motoo Kimura, entretanto, mostra que a maioria do genoma não foi selecionado de maneira positiva. A neutralidade acontece no sentido de não haver grandes diferenças quanto ao grau de funcionalidade dos alelos de um gene, assim nenhum seria selecionado. Portanto, quando os alelos são neutros, não há forças deterministas atuando e os alelos estão livres para flutuar em frequência ao longo do tempo.



Outro pilar da evolução seria o gradualismo. A evolução acontecendo de maneira lenta e gradual, onde pequenas mudanças chamadas microevoluções gerariam macroevoluções. O equilíbrio pontuado dos biólogos Eldredge e Gould vem para tentar destruir esse pilar. “O equilíbrio pontuado demonstra que o registro fóssil é marcado por grandes intervalos de estagnação morfológica, pontuado por breves períodos de especiação” ¹. Em outras palavras, a especiação ou aparecimento de novas espécies aconteceria de maneira rápida e não gradual. As grandes extinções nos servem como bons exemplos; após cada um dos eventos, grandes grupos taxonômicos surgem em breves períodos de tempo geológico.



Sendo assim, através de uma breve análise podemos perceber como a estrutura da síntese moderna é inundada com acomodações teóricas e de um imenso foco nos genes, o chamado genecentrismo. O papel dos genes como agentes da herança entre organismos é superestimado.  “O que precisamos é colocar o gene no seu devido lugar. Não podemos mais atribuir a eles um papel causal privilegiado na evolução e no desenvolvimento. Tampouco podemos continuar a acreditar em uma noção de programa genético para o desenvolvimento” ¹.  Mas então qual o papel dos genes no processo evolutivo?



Para o processo evolutivo, os genes não são agentes centrais mas sim coadjuvantes. O genoma, conjunto de todos os genes, apenas tem a informação para a construção de uma estrutura inicial do organismo, de onde se iniciará o processo de desenvolvimento ou ontogênese.  “A forma e a geração de forma numa célula depende essencialmente das próprias propriedades da matéria e de suas propriedades de auto-organização e não da execução de um programa genético programado pela seleção natural” ¹.



O que é herdado à próxima geração é um sistema celular necessário ao processo ontogenético, tudo após isso, advém  da interação entre o processo de desenvolvimento e o meio no qual ele acontece. A ontogenia portanto, é a reconstrução do fenótipo. Essa ideia é uma das grandes contribuições da biologia do desenvolvimento para o estudo da evolução. O fenótipo não é herdado, mas sim reconstruído através da ontogênese sucessivamente.

Porém aqui, uma grande questão emerge. Se os genes e a seleção natural não são tão importantes assim no processo evolutivo, como acontece então o processo de especiação? Como novas espécies surgem? A resposta está no próprio desenvolvimento.


Mudança ou divergência no processo ontogenético. Adaptado¹.

“O processo de especiação nada mais é do que simplesmente uma mudança no desenvolvimento ontogenético” ¹. Podemos entender esse processo de maneira simplificada através da figura acima. Na letra A, o desenvolvimento de determinado organismo se dá de maneira normal com resultado esperado, o que acaba ocorrendo na maioria da vezes. Em B, uma divergência ocorre e o processo desenvolvimental termina em um fenótipo novo. Em C, o novo fenótipo estabelecido formará gametas com um potencial diferenciado de desenvolvimento.

Uma explanação do processo é necessária. Primeiramente, é interessante notar que o surgimento de uma nova espécie não necessariamente provoca o desaparecimento da antiga, como acreditava Darwin. A espécie antiga seguirá seu próprio caminho ecológico diferente da espécie filha, podendo se dividir novamente no futuro. Outro aspecto relevante é o de que em grande parte das divergências ontogenéticas os “monstros” gerados não seriam tão promissores assim, portanto, não vingariam ecologicamente, pois o tamanho da diferença fenotípica dependerá fortemente do momento cronológico em que a alteração ocorreu.

“Para o surgimento de monstros promissores, nem mesmo é preciso que haja uma mudança genética sequer. A sequência genômica pode muito bem permanecer a mesma e ainda assim podermos ter especiação” ¹. O desenvolvimento ontogenético não depende exclusivamente dos genes, uma reorganização dos elementos estruturais já pode acarretar em mudanças.

A especiação através de mudanças na ontogenia acontece pois o processo desenvolvimental se caracteriza por ser robusto, ou seja, capaz de resistir às perturbações, ao mesmo tempo que também é munido de certa plasticidade. Essa plasticidade é sem dúvida importante durante o processo evolutivo. Porém, aqui é necessário diferenciar plasticidade fenotípica da ontogenética.

Plasticidade fenotípica pode ser conceituada como a habilidade de mudança de forma, estado, movimento ou taxa de atividade em reação a efeitos ambientais internos ou externos. Já a plasticidade ontogenética seria a qualidade dos organismos de reconfigurarem seus mecanismos epigenéticos de modo que a especiação ocorra. “Uma nova espécie recém-surgida irá apresentar seu próprio leque de respostas plásticas fenotípicas à ação do ambiente e ao mesmo tempo continuará dotada de plasticidade ontogenética de modo que essa espécie possa dar origem a outras ao longo do tempo” ¹.

Aos poucos, o escudo neodarwinista é quebrado e outras armas evolutivas começam a entrar na batalha científica. Precisamos eliminar a acomodação teórica e buscar novas formas de interpretar os processos da teoria evolutiva. Aqui, vimos resumidamente uma dessas formas, porém, muitas perguntas ainda estão em aberto. Que evolução ocorre, a comunidade científica já sabe, agora o problema é como ela acontece.

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Referência

¹ ZACCHI, Edgar Wiese. Rompendo Paradigmas: a evolução de novas formas biológicas por mudanças no desenvolvimento ontogenético. In: COFRE, Jaime; SAALFED, Kay (Org.). Discussão De Novos Paradigmas: vida, embriologia e evolução. Florianópolis: Editora Ufsc, 2011. p. 95-116.

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